terça-feira, 23 de outubro de 2007

Portais

Nasceria uma criança. Um anjo avisou isso aos seus pais. O anjo não disse seu nome, mas revelou o nome da criança. Jamais outro homem faria as coisas que ele haveria de fazer.

Jamais.

Assombrou as nações com feitos espantosos quase 20 anos. Seu nome virou uma lenda. Sua história uma canção. Por décadas as crianças do oriente médio só iriam dormir depois que os pais lhes falassem a mesma história que jamais cansavam de escutar. A vida era maior do que aquilo que podiam ver. Haviam poderes desconhecidos trabalhando na terra. Constatar que o mundo era sobrenatural. Se Deus pode fazer isso com um homem, tudo Deus pode fazer. Se um homem nasceu assim, outros poderiam nascer fazendo coisas semelhantes. Talvez maiores.

Bastava que existissem anjos para anuncia-lo.
Bastava que Deus assim o determinasse.

Foi assim com João Batista.
Foi assim com Jesus.
Pode ser assim conosco também.
Mesmo que não hajam anjos para anunciar.

Jz:16:
Jz:16:1: E FOI Sansão a Gaza, e viu ali uma mulher prostituta, e entrou a ela.
Jz:16:2: E foi dito aos gazitas: Sansão entrou aqui. Cercaram-no, e toda a noite lhe puseram espias à porta da cidade; porém toda a noite estiveram quietos, dizendo: Até à luz da manhã esperaremos; então o mataremos.
Jz:16:3: Porém Sansão deitou-se até à meia noite, e à meia noite se levantou, e arrancou as portas da entrada da cidade com ambas as umbreiras, e juntamente com a tranca as tomou, pondo-as sobre os ombros; e levou-as para cima até ao cume do monte que está defronte de Hebrom.

Os Portais (Jz 16.1-3)

Era por volta de dez horas da noite. O Aviso da presença do fanfarrão hebreu já havia sido anunciada por toda a fortemente armada guarda da semi-metrópole de Gaza. Havia chegado o tempo de desmistificar a lenda da invencibilidade daquele cananeu beberrão. Os muros altíssimos impediriam que ele pulasse e já que os relatos sobre ele não mencionavam nenhuma capacidade de vôo, dali o sujeito só sairia sem os olhos, devidamente decapitado. O cabra safado havia pernoitado com uma prostituta. Não sabia viver sem mulher. As mulheres ainda haveriam de ser sua perdição.

O tal renegado, conforme contaram, tivera sua esposa trucidada por gente do mesmo povo daquela cidadela. Talvez fosse esse o motivo de voltar vez por outra ali. Também havia sido execrado pelos pais. Triste curriculum. Os generais dos exércitos da Filístia tinham medo de um bêbado, fracassado no casamento, desprezado pelos pais, que pelas madrugadas se divertia com prostitutas de quinta categoria. Eu havia sido promovido naquele ano ao posto de comandante e tinha 400 homens ao meu dispor pronto a capturar o mais temido soldado do povo hebreu, embora pessoalmente considerasse um desperdício tamanho contingente para capturar somente um homem. A cidade estava fechada e só tinha saída pelos portões gigantescos que eram travados ao anoitecer. Duzentos homens não o arrastariam uma vez que as travas estivessem colocadas. O muro onde ele se engasta tem três metros de largura e os batentes e encaixes são de ferro. É o fim do tal imortal, conforme contavam as lendas a respeito dele. Pensei em enviar uns três grupos para cercar o tal prostíbulo, porém ele já havia saído em direção aos portais. Sem saída. Morto. Escreverei nos muros da cidade minha vitória com o sangue do infeliz. Já me imagino recebendo as chaves da cidade, o tribunal sagrado me concedendo o título de filiação divina. O cortejo com as dançarinas e as festas comemorativas à noite.

Por toda à noite a ordem era esperar em silencio até o momento de cair sobre ele e destroça-lo. Quando amanhecesse já não poderia mais se refugiar nas sombras para se esconder. Por volta da meia-noite nós o cercamos junto ao portão. Posso ver o medo nos olhos do desgraçado. Um rato na ratoeira. Os lanceiros se preparam, mas eu dou ordem de não atirarem. Mando pegar minha espada. Meu escudeiro trás a capa dourada com a empunhadura ricamente adornada de púrpura com os laços cor de carmesim. A lua é refletida no metal prateado da mais preciosa espada do reino da Filístia. Três gerações de guerreiros haviam empunhado a afiadíssima lamina em inúmeras e gloriosas batalhas. Levanto a espada pa o alto agradecendo a Dagom a honra de exterminar com o grande guerreiro dos hebreus. Eu mesmo vou arrancar a cabeça do condenado.
Meus soldados se afastam enquanto caminho com passos firmes em direção ao quase finado homem de guerra das tribos dálem do rio.
Pelo que observo, o pobre coitado enlouqueceu. Ainda estava um pouco distante dos portais, mas pelo que parece a infeliz criatura o está tentando abrir com as mãos. Sozinho. Um inseto burrinho, diante da imensidão dos portais, cujas asas vou arrancar.
Era pior do que eu pensava. O que é que o desespero não faz com um indivíduo. Ele não está tentando abrir; está tentando arrastar os portais. Animalzinho irritante. Dois meses de preparativos foram gastos para suspender os gloriosos portões de Gaza. Dezenas de escravos foram esmagados instantaneamente quando uma das folhas da porta magnífica arrebentou as grossas cordas que eram tencionadas pelos carros com animais. Eu era pequeno na época que os portões foram erguidos, dois anos após seu projeto e construção. E agora um único homem, filho de um povo sem honra, de uma tribo de beduínos, de errantes, tenta erguer as consagradas portas de Dagom, cujo peso excede o entendimento. Ainda me lembro do cheiro do azeite e do sangue de crianças imoladas na consagração dos portais. O som das trombetas da invencível Gaza reverberando a glória da mais poderosa fortaleza criada na terra desde a antiga cidadela de Jericó ainda estava nos meus ouvidos.
Foi quando escutei o barulho ensurdecedor de rochas se partindo. Foi quando, a belíssima e hereditária espada com meu nome gravado caiu da minha mão. O som era semelhante ao de um raio caindo, só que não haviam nuvens carregadas sobre o céu estrelado daquela noite.
Por detrás de mim o grito de terror de uma multidão de pessoas, (e não era dos civis da cidade). A visão era por demais aterradora. Os símbolos do Poderio de Gaza, uma das maiores cidades do império Filisteu, estavam sendo arrancados diante dos meus olhos estupefatos. Um único homem erguia sobre suas mãos ambas as folhas das portas, suas umbreiras e sua trave, Os engastes de ferro fundido e bronze se partiram diante daquela força gigantesca, enquanto pedaços do muro com três metros de pedras lavradas rolavam no instante em que os portais eram levados para fora da cidade. Em nenhum momento ele as arrastou pelo chão. Impassível ele as colocou sobre si e se foi. Correndo.
Ele se foi, levando em suas costas os portais.
Perguntei se havia algum voluntário para sair no seu encalço e o silencio foi minha resposta.
Três dias depois saímos com um grupo de patrulha a procura do semi-deus, parando aos pés da montanha que olha para o cume do Hermon, 36 Km da cidade de Gaza. Sobre o alto do monte havia algum tipo de fortificação. Quando subimos nele pela estrada que ia para o Hermon, encontramos os portões. Estavam lá, eu me lembro perfeitamente, iluminados pelo sol de um novo amanhecer. Estávamos assombrados demais para dizer alguma coisa. Resolvemos cessar imediatamente a perseguição.
Soube depois que o homem que fizera tal maravilha tinha cinqüenta anos na época em que fez tal coisa. A mesma idade que tenho hoje, quando visito de novo o Monte dos Portais. Os portais já não existem mais, foram queimados há dez anos atrás, quando finalmente conseguiram destruir o tal homem. Quatro mil pessoas pagaram com a vida a ousadia. Na época eu não acreditava em nada, somente na força de minha espada, que por sinal perdi na correria daquela noite miraculosa. Olho para o alto e adoro agradecido o Deus que permitiu que vivesse para contemplar tais coisas. A muito não sirvo mais ao sanguinário Dagom.
Hoje me dirijo ao santuário de tenda, erguido em Siló, como fazem todos os anos aqueles que como eu também fizeram o voto de nazireu.
A circuncisão foi a única coisa incômoda nessa nova etapa da minha vida...


(... E os cabelos compridos incomodam um pouco no verão).


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