A história de Rute
A leste de Canaã e a oeste das montanhas de Moabe, num dos terrenos mais ásperos do deserto da Judéia, vê-se um profundo canal no centro do qual existe um lago com uma área aproximada de 930 km2. Esse corpo d'agua é chamado, em hebraico, "Inhame Hamelah", que significa "o mar Salgado". São 77 km de comprimento (norte-sul) e cerca de 16 km, na maior largura. A profundidade máxima do lago é de cerca de 400 m, estando sua superfície a pouco mais de 400 metros abaixo do nível do mar. Trata-se do local mais baixo da terra. Por milhares de anos, as águas do Jordão, ricas em minerais, abasteceram o lago. A elevada evaporação provocada pelo clima do deserto aumentou a salinidade para índices próximos a 30% (nos demais mares, 3% a 6% ), o que favoreceu a formação de cristais na superfície. A composição mineral do lago é de: 67% de cloro, 17% de magnésio e 10% de sódio; além de outros sais em menor percentual. A presença do enxofre é de 0,2%.Belíssimas formações de sal cristalizado, na superfície do Mar Morto. Antigos escritos judeus identificam esse corpo d'água como "Inhame S'dom" - "o mar de Sodoma" -, nome da cidade destruída por Deus e que era localizada em suas margens meridionais (Gn 19). Alguns peregrinos, em tempos antigos, chamaram-no de "o Mar do Diabo" ao mentalizarem o diabo centelhando, ao tomar banho nas águas do lago". Os filósofos gregos Aristóteles e Strabo escreveram sobre o lugar e chamamdo-o de "Lacus Asphaltis", ou "Lago de Asfalto".Mas, para os gregos antigos, a desolação da área e a convicção que nenhuma vida poderia sobreviver nela, foi inspiração para um nome novo: "o Mar Morto".
Cerca de 900 anos antes de Rute nascer.
Um homem triste olha para uma formação de salitre que lembra um corpo feminino caído. Onde havia uma imensa campina, bosques verdejantes de beleza ímpar, agora se estendia um imenso mar. Às margens daquele mar estranho, ainda exalando vapores de ocre odor, com o corpo coberto de fina camada de sal trazido pelo vento inconstante, um homem chora a perda de sua esposa. Ele toca na formação de sal, que parece uma mulher caída, tremendo se levanta e caminha sem direção. Ainda tremia do estrondo e do clarão que transformou as cidades de sua moradia em lenda, em conto, em agouro, numa ruína de perdição, de ruas cobertas a quatrocentos metros abaixo de onde os olhos avistavam a superfície do mar morto.
Ele, caldeu, lembra da cidade de Ur, das cadeiras e mesas das salas de aula, das danças e festividades de sua terra natal. Da cidade dos mil deuses, que há tanto tempo deixara para trás. Desde que saíra tudo aconteceu de errado. Seguiu com seu tio que disse ter tido visões com um Deus desconhecido que o chamava para uma terra prometida, com a qual também desejou sonhar. E lembra que desobedeceu a ordem do Deus estranho, que só havia chamado a seu tio àquela estranha aventura. Ele não foi convidado. Por vinte anos ele vagueou sem rumo, porque simplesmente não tinha direção. Nenhuma direção.
Ló chegou as campinas de Moabe junto com suas duas filhas, poucos dias depois da hecatombe que sinistrou a Sodoma e Gomorra. Desiludido com os homens, dos quais ele, infelizmente, conheceu o lado pior, decidiu habitar os montes e as cavernas. Suas filhas sabiam que não se casariam, naquele ermo lugar, que só viria possuir cidades centenas de anos após a solitária peregrinação de Ló.
Numa noite sinistra, quando após alguns anos elas perderam a esperança de voltar a viver perto de alguma civilização, tomadas do horror de se transformarem em duas velhas desamparadas, como bruxas morando no interior de cavernas e temendo que após décadas de solidão, lobos as encontrassem já sem forças para se defender, elas decidem que devem gerar filhos, mesmo que seja a custa de seu próprio pai.
Nessa noite perdida entre as noites de antigos povos, elas embebedam seu pai, e na madrugada envoltas na escuridão, sem nenhum pudor se deitam com ele. Sem ter plena consciência do que faz, ele as engravida. Um dos filhos desta noite sinistra se chamou Moabe.
Cerca de 430 anos antes de Rute nascer:
Um imenso grupo de gente, incontável multidão se aproximava lentamente da antiga planície. Ali habitavam os descendentes da noite que se perdeu na história.
Os descendentes viram ao longe por semanas uma tocha de fogo que se elevava aos céus, como um redemoinho em chamas que anunciava que os que tinham destruído o Egito, agora se aproximavam. Quando amanheceu os reis do recém fundado reino de Moabe receberam a delegação dos forasteiros que solicitaram passagem por suas terras. Ao longe a multidão, agora guarnecida de uma imensa nuvem que como coluna de fumaça se elevava a frente de uma estranha tenda, uma enorme tenda que sobressaia sobre as outras, aguardava a resposta.
Os reis num misto de inveja e terror, disseram não. Não lhes importava as crianças, os idosos ou o quanto iriam ganhar de tempo. Não permitiriam que aqueles deuses estranhos, nem sua coluna de fogo, nem a tal coluna de nuvem, passassem pela terra dos seus ancestrais.
Os antigos reis observam quando o ancião com o cajado perto da imensa tenda recebe a notícia de que não poderiam passar.
A massa imensa de gente levou dias para se por em marcha. E levaria meses para chegar aonde pretendiam. Mas, isso não era da conta dos soberanos de Moabe.
Muitas noites com insônia se passaram. Depois de muitos dias a tal coluna de fogo e a tal coluna de nuvem reapareceram e com elas aquela inumerável multidão.
Os reis de Moabe e de outras terras chamadas Mídia em terror incalculável resolveram convocar o poder das trevas para impedir que aquela marcha insana continuasse. De boca em boca foi passada a torpe mensagem:
- Convoquem a Balaão.
Na densa escuridão da noite, durante o período que os trovões levam, antes do próximo relampejar, trepidavam patas ferradas dos corcéis negros, ferrando as poças da lama ocre no caminho lamacento até a lendário castelo do feiticeiro mais poderoso da terra. O alvo dos olhos dos animais resplandecia, junto a sua escura crina a cada raio que os iluminava. Montado sobre o negro animal, os mensageiros e das terras distantes de Moabe, com suas indumentárias escuras e encharcadas, gritam para os guardas à frente dos gigantescos portais da antiga fortaleza, na qual Balaão habitava. As imensas portas são abaixadas, enquanto eles ainda chicoteiam os alazões, ao sonido agora ocre, do trote nas pedras lavradas, recobertas de liquens acinzentados, do pátio castelar.
Da sacada superior, uma sombria figura observa a chegada dos mensageiros midianitas e moabitas. Deixando para trás suas cansadas montarias, caminham como arrastassem a si mesmos, até o grande salão de pórfiro e granito, enquanto um sombrio ajudante vai murmurando algum aviso para aquele que se assenta sobre uma gigantesca cadeira adornada de púrpura e de madeira ricamente trabalhada. Quase um trono. O mensageiro entra solene pelas portas palacianas, subindo até o lugar do grande salão rodeado de colunas de rosacrocita. Eles param subitamente e se ajoelham, enquanto as abas de suas vestimentas molhadas enchem como um vestido o lugar onde se abaixam. Na verdade, usam todos capas. Negras. Aquele que está sentado não se vira para cumprimentá-los. De costas ainda, levanta uma das mãos esqueléticas fazendo um gesto com a ponta dos dedos, sob o olhar malévolo e olhos semicerrados do sombrio homem ao seu lado direito. Os mensageiros se levantam e caminham, enquanto suas sombras se projetam na cortinada das colunas, através da luz das lamparinas acesas com óleo de baleia albina. O ruído de suas botas de couro molhadas sobressai agora no silencioso salão, reverberando a cada passo sobre o pórfiro impecavelmente polido. Próximo ao homem assentado, quando se achegam, ajoelham novamente em reverência. Fala então um dos mensageiros de Moabe:
— Ó! poderoso feiticeiro. Nossos guerreiros dalém, nas terras distantes, que batalham já a longo tempo, necessitam dos préstimos de tuas maldições. Os reis de Moabe e de Mídia me enviaram a ti para que, encontrando mercê diante de ti, dignasses a conceder-nos teus dons sobrenaturais contra um terrível povo que vem do oriente.
Quebrava-se o silêncio sepulcral através do murmúrio do vento soprando entre as frestas das pedras nas paredes. Soando tal som como fosse um antigo órgão tubular. O olhar do sombrio homem ao lado do feiticeiro, semicerrou-se ainda mais.
Finalmente o antigo feiticeiro se levantou. Arrastou a estranha roupa cheia de cangas e cordas com ossos partidos e dentes em quantidade que batiam uns nos outros, enquanto se apoiava ao bordão que possuía uma pequena caveira na extremidade, completamente enegrecida. Em suas mãos um colar de conchas e pedras, dando diversas voltas em suas mãos cadavéricas. Ele aperta as conchas com suas velhas mãos enquanto estica o indicador com horrenda unha em direção ao mensageiro.
— Que queres, tu de Balaão? Sabes que sobre quem lançar minha maldição, maldito será por toda a eternidade. Irão secar as fontes e corredeiras de sua terra, seus filhos morrerão ainda jovens de peste e as virgens já não gerará mais. Virá fome sobre as cidades, sequidão sobre as pastagens, doença no gado e nos homens. Não ficarão fracas e inúteis as mãos dos hábeis arqueiros? Não semearia eu terror sobre toda a terra? Que queres de Balaão, servo de ninguém?
- O rei meu senhor pede teus serviços. E te recompensará regiamente.
Balaão se arrasta sobre o pórfiro com uma risada aterradora. Encurvado se dirige a mesa e tomando de um líquido viscoso e cor de sangue, derrama a taça de prata enquanto gotas do líquido vermelho se derramam pelo chão. Ele se volta ao mensageiro, enquanto o barulho do bordão ressoa em todo o salão a cada passo de sua perna coxa. Então fala:
E que povo morto é este, quem serão os coitados e miseráveis sobre os quais se abaterá a palavra da maldição, que se farão como fantasmas e cujas vidas separadas para o desespero serão, que nação é essa que desaparecerá de sobre a face da terra, essa que eu terei o infortúnio de maldizer?
Os mensageiros se calam.
Balaão olha curioso. E grita:
- Respondam-me para que não morram, ainda de pé, mensageiros tolos!
Os céus relampejaram neste instante, tornando o olhar de Balaão ainda mais assustador
- É o povo d’além mar, cujos deuses destruíram a terra do Egito, aquele que de noite vai a frente a coluna de fogo e que ao amanhecer é precedido pela coluna de nuvem.
A taça cai da mão de Balaão. Rapidamente ele expulsa os mensageiros, dizendo que depois dará uma resposta.
Na noite misteriosa e chuvosa, relampeja quando os dois ajudantes misturam junto com o velho bruxo as poções, repetindo as preces e invocações de sacerdotes da antiguidade, de escritos de línguas mortas, e ritos que já não existiam.
Deixando de lado os deuses de Mídia e Moabe, esquecendo-se das divindades dos heteus e jebuseus, Balaão invoca a divindade protetora do povo além do mar. E invoca aquele que conhece por El Shadai, El Elion e Senhor. Escolhe chamar-lhe por Senhor.
Quando o invoca, Ele sente uma estranha presença. Uma poderosa presença. É ele.
Senhor havia chegado.
Senhor se apresenta ao feiticeiro. Balaão conhece pouco a Senhor. Não exigia sacrifícios humanos. Não falava ou agia como os outros espíritos com tratava. Na madrugada, claramente Balaão ouviu uma voz. E sabia quem falava com ele. Era Senhor.
- Quem são estes homens que estão contigo?
Tremendo Balaão responde: Balaque, rei dos moabitas os enviou para amaldiçoar o povo que saiu do Egito.
Senhor responde:
- Você não o fará. Eles são benditos.
E então se cala. A voz nada mais falou. Um feiticeiro só amaldiçoa um povo, se obter acordo com os espíritos que guardam tal povo. Ele os invocaria e veria o que eles pediriam para atender a Balaão. Mas não havia acordo com Senhor. Ele não negociava. Jamais.
Contrariado ele despede aos mensageiros.
- Vão embora, mensageiros de ninguém. O espírito que guarda ao estranho povo impediu-me de amaldiçoar ao estranho povo. Vão. Vão e não voltem mais.
Quando os mensageiros chegam ao amanhecer, ainda chovia sobre as planícies de Moabe. Balaque se desespera. Envia seus mais nobres príncipes com riqueza e recompensa como nunca antes um feiticeiro na terra, jamais fora agraciado. Eles chegam com ovelhas em multidão, bois, cabras e camelos. Trazem especiarias, azeite e mel, passas e damascos, vinho e leite. Mantas púrpuras e carmesim, vestidos bordados de azul e ouro.
Seus olhos faíscam com a avareza. Riqueza inimaginável.
Ele finge não se interessar. Porém ao ver tamanha riqueza, Balaão decide tentar negociar com Senhor. Mais uma vez.
Ele insiste permissão, ao menos para ir com eles. Mas, dentro de si maquina um plano. Ele invocará outros deuses e certamente haverá mais poderosos que Senhor. Ele só precisa ir.
- Vá com eles. Ao amanhecer. Mas só farás o que eu te disser.
Balaão concorda. Mentindo. Ele se ajoelha, como se pudesse enganar sua verdadeira intenção.
Ainda de madrugada, antes que amanhecesse, inquieto, preparou sua velha montaria. A mula. A velha mula. Rico. Rico, ele pensava. Mas, Senhor escutava seu coração.
Na subida dos montes em direção as fronteiras de Moabe uma velha mula se assusta. O velho animal empaca ao sentir o poder espiritual e a luz que só ela, a mula, enxerga. As crinas no pescoço acinzentado do velho animal se arrepiam ao ver a estranha criatura. E seus olhos se fixam nas mãos do anjo que carregam uma espada incendiada. Na região montanhosa Ela, a mula, quase esmaga a perna de seu dono. Ele espanca a coitada e continua a íngreme subida. Outra vez o ser aparece. E só ela, a mula, consegue enxergá-lo. Desta vez Balaão é empurrado contra a encosta rochosa. Descendo furioso do animal, ele o chicoteia sem misericórdia. Em meio aos gritos da mula, um assombro. Ela se vira para Balaão e dotada de repentina inteligência, deixando de lado os zurros, contra tudo que poderia se esperar de tal animal, ela fala.
- Porque me espancas assim? Já fiz algo contigo assim, nos muitos anos que sou tua montaria?
Balaão era um feiticeiro. Adivinhava pelas nuvens. Orava para árvores sagradas. Acostumado aos ruídos estranhos e as bruxuleantes manifestações de todas sortes de espíritos, das divindades em formas de animais, não estranha o acontecimento. Os animais em seus sonhos falavam. Ele simplesmente responde como se fosse natural conversar com um animal.
- Maldito animal, por duas vezes você quase me esmagou a perna!
Então seus olhos são abertos. Vê o que só sua mula via. O ser com uma espada incandescente. Ele cai de joelhos enquanto ouve agora, não mais a voz da mula, mas a voz do ser que se interpunha em seu caminho:
- Se teu animal não tivesse impedido, tu agora estarias morto. Foi essa a ordem que foi te dada?
- Não.
- Espera o amanhecer e vai com aqueles que eu ordenei.
A visão se desfaz. Balaão entende que nada pode esconder diante daquele, que tudo vê.
O feiticeiro volta para casa e ao amanhecer sobe até as montanhas, acompanhado de comitiva real dos moabitas.
Então chega ao cume dos montes ao entardecer, no momento em que a nuvem branca que se eleva da terra a frente da multidão, próxima a grande tenda, tornár-se em chamas e incandescer. A face de Balaão e as terras de Moabe se iluminam com as chamas da coluna que se ergue na frente da tenda do santuário, do Deus do povo d´além do mar. Balaão sabe que nada poderá fazer. Invoca suas divindades e faz seus ritos, mas não são os espíritos ancestrais que vão ao seu encontro. É ele. O protetor daquele povo. Senhor. El Shaddai. Tomado de um poder que arrebata suas entranhas e que lhe enche de palavras, profere:
De Arã, me mandou trazer Balaque, rei dos moabitas, das montanhas do oriente, dizendo: Vem, amaldiçoa-me a Jacó; e vem, denuncia a Israel.
Como amaldiçoarei o que Deus não amaldiçoa? E como denunciarei, quando o SENHOR não denuncia?
Porque do cume das penhas o vejo, e dos outeiros o contemplo; eis que este povo habitará só, e entre as nações não será contado.
Quem contará o pó de Jacó e o número da quarta parte de Israel? Que a minha alma morra da morte dos justos, e seja o meu fim como o seu.
Balaão sabia que ao pronunciar aquilo, perdia todas as riquezas prometidas. Mas nada podia fazer. Era o Senhor que falava através dele.
Quando descem do monte naquela noite, ele ainda almeja a riqueza que lhe escapou. Ainda anseia pelo ouro que lhe foi ofertado.
Então sua alma de feiticeiro fala mais forte, do que o dia em que se tornou profeta.
Ele olha para Balaque e diz:
- A única chance de Moabe, é que eles se afastem do Senhor. Usem suas mulheres mais belas. Seus ritos mais torpes. Mexam com o desejo humano. Tornem os filhos deste povo, adoradores de deuses desta terra. Contaminem sua herança. E então, vencereis...
Os conselhos de Balaâo são seguidos a risca. Milhares de mulheres moabitas e midianitas são convocadas para festividades que durariam semanas, concedidas as mais nefastas e torpes divindades de Canaã. E os ritos que misturavam prazer e vinho; incenso e orgias, contaminou de modo profundo a Israel.
Até que veio a praga. E milhares morreram enfermos.
Meses se passaram quando outra comitiva convocou o mesmo Balaão. Agora para uma guerra. Israel, tendo Moisés como comandante viria contra as forças de Balaque e Moabe.
Os exércitos se aproximam numa multidão considerável. Ao longe se destaca a figura torpe do bruxo dos bruxos. Segurando seu bastão enegrecido e invocando suas divindades, qual um sacerdote de poderes negros, ele amaldiçoa ao exército inimigo. Ele amaldiçoa a Moisés.
O profeta olha para o imenso exército e experiente exército. Olha para os doze mil separados contra a superioridade inimiga.
E de longe, encara a Balaão. O cajado negro levantado sobre o monte o denuncia.
Um segundo bastão é levantado. O cajado de Moisés. E Israel parte para a batalha sangrenta.
O exército do mago contra o exército do profeta.
Não. Contra o exército de Senhor.
Naquele entardecer um exército inteiro morre, junto ao seu feiticeiro.
Os moabitas foram proibidos de sequer se aproximar da tenda da congregação. Nenhuma geração jamais teria o direito de adorar ao Deus de Israel nem na tenda da congregação, nem no templo que um dia se ergueria em israel.
Nenhuma geração...
430 anos após a morte de Balaão.
A história de Rute
Capital de Moabe – Kir Moabe
A crise econômica tomou o oriente médio de surpresa. Meses de estiagem deixaram os pastos israelitas secos. Antigas fazendas, um dia célebres por seus produtos, agora eram sítios abandonados. Cada manhã as cidades israelitas acordavam com o monótono som das moedeiras que desde cedo batiam em seus pilões de cedro os grãos colhidos no dia anterior. Agora, em muitas cidades israelitas o que ouvia era o silencio.
Nessa época de crise, cerca de 1100 anos antes de Cristo, uma família judaica emigra para um país chamado Moabe em busca de melhores condições de vida. A família é composta de um casal e seus dois filhos. Sai então de Belém de Efrata na região chamada Judéia, descendentes de uma das doze tribos, a tribo de Judá. Noemi, seu esposo Elimeleque, e seus dois filhos, Maalom e Quelion.
Noemi: - Querido, temos que ir mesmo? Não há outra solução, é uma terra estranha, de deuses estranhos. Os costumes dos moabitas são distintos dos nossos...
Elimeleque: - Noemi, tu sabes que os pastos secaram. Nossas economias se dissipam rapidamente. Vendemos as terras que pertenceram aos nossos pais. Devemos ter esperança, quem sabe Deus não se mostra propício para que encontremos famílias que nos acolham, uma terra para semear e colher.
Campinas de Moabe
Mas a sorte não lhes favorece. Em Moabe veio a falecer Elimeleque, deixando Noemi viúva com seus dois filhos.
Pouco após a morte de Elimeleque, uma grande festa é dada por uma nobre família moabita. Duas irmãs festejevam a paixão e a alegria de se casarem na mesma época. As pétalas de flores são jogadas abundantemente no caminho das jovens enfeitadas no dia de seu casamento. Noemi ainda pesarosa da morte de seu esposo encontra consolo na chegada de duas meninas e um novo início em sua vida.
Seus filhos casaram-se em Moabe, com duas jovens chamadas Órfã e Rute.
Por alguns meses tudo melhorava. Foi quando a notícia do campo chegou. Um acidente acontecera. Um boi ainda não amansado ferira gravemente ao filho mais velho. Maalon não resistiu à gravidade dos ferimentos e então morreu.
Rute perdera seu esposo e chorava desconsolada abraçada com sua irmã, Órfã.
Seis meses se passam. Um grupo de nômades tenta assaltar as ovelhas da fazenda de seus sogros. Quilioon os enfrenta bravamente. Os afugenta, mas se fere gravemente no combate, vindo também a falecer.
Órfã agora enviuvava também, e era ela que agora chorava sobre os braços de sua irmã.
Noemi havia perdido a tudo que possuía. Terras, familiares e mesmo a esperança. Desamparada em terra estrangeira, chegam notícias a Noemi que os pastos reverdeciam e que a economia de Israel estava crescendo novamente.
Ela se preparou para partir de Moabe, mas suas noras quiseram acompanhá-la. Ela insistiu para que não fizessem isso, para que voltassem para casa de seus pais, porque mesmo voltando para sua terra, não possuía mais nenhuma possessão, que vendera para financiar sua estadia em Moabe. Voltava para a cidade natal sem perspectivas, com um futuro incerto. Diz que está velha demais para ter novos filhos para que elas possam desposar. Noemi abençoa suas noras, lembra de como foi bem tratada na sua estada em Moabe e deseja que elas tenham paz, abundancia e possam casar-se novamente.
Órfã, diante de tantos argumentos, chora e desiste de acompanhá-la, voltando para casa de seus pais. Rute permanece impassível, mesmo diante de um futuro tão pouco promissor, mesmo diante da insistência de Noemi para que ela retorne para o conforto da casa de seus pais.
Rute simplesmente diz:
- Onde quer que você for, eu vou te seguir. Tua nação será a minha. Teu Deus será o meu Deus. Onde você for enterrada, aí serei eu. Nada se não a própria morte poderá impedir que eu te acompanhe.
E assim foi com Noemi naquela viagem insólita, para um destino sem amanhã.
Despedindo-se de seus pais, ela acompanha a desafortunada Noemi.
Quando alguns dias depois elas chegam na cidade, as notícias sob sua vinda já lhe antecediam. E todos estavam admirados tanto pela tragédia que se abatera sobre sua família, como pelo fato do tremendo amor que Rute demonstrara a uma israelita.
Por séculos Moabe e Israel tiveram sérias crises, guerras, desavenças e preconceitos, em virtude de terríveis fatos entre a história dos dois povos no passado. Os moabitas, foram proibidos de ADORAREM a Deus na tenda da Congregação, não poderiam realizar sacrifícios ao Deus de Israel, tamanha era a diferença que existia entre os dois povos.
Reis moabitas impediram em tempos idos que o povo de Israel sob a direção de Moisés transitasse em suas terras, em direção a terra prometida, o que fez com que milhares de mulheres e crianças por cerca de 40 dias ou mais enfrentassem o deserto numa difícil caminhada. Certa feita, reis moabitas contratam um feiticeiro para amaldiçoar a Israel.
Noutra aceitam os conselhos para cativarem os israelitas para cultos onde havia orgias e prostituição cultual, onde milhares de adolescentes ‘se entregavam’ para cativar o coração dos israelitas à certas divindades imorais dos Moabitas. Durante séculos os moabitas roubaram as fazendas, fizeram coalizão com outros povos para destruição de cidades israelitas. Além dos problemas políticos, das guerras, havia uma questão da origem dos Moabitas. Eles eram vistos como “o povo que descendeu de um incesto” por herança do nascimento de Moabe, pai de todos os moabitas.
Depois de escapar da destruição de Sodoma e Gomorra, Ló, sobrinho de Abraão, desiludido com a vida em sociedade, torna-se um ermitão, morando em cavernas das regiões montanhosas. Lá suas filhas, após alguns semanas de afastamento das cidades e impedidas de se casarem pelas circunstancias, engendram um plano, embebedam seu pai por duas noites e ambas se deitam com ele, engravidando ambas e dando luz a dois filhos: Amom e Moabe.
O avô e pai de Moabe, Ló, por sua vez também têm uma história de desilusões e erros. Morou em duas das mais corruptas cidades que já existiram, perdeu sua esposa junto ao mar morto por causa do Juízo divino sobre essas cidades; perdeu seus bens; certa feita fora aprisionado e seqüestrado pelos reis que um dia iriam originar a Babilônia; Ló saiu de Ur dos caldeus junto com Abraaão, quando Deus chamou SOMENTE a Abraão para ir ao lugar onde todas essas coisas lhe ocorreram. Ele seguiu junto a um homem que fora chamado por Deus para realização de algo, contra a ordem dada a esse mesmo homem: “Sai da casa de teus parentes, deixa para trás teus parentes”. Ló era parente de Abraão. Entende-se então o espanto dos habitantes de Belém pela chegada e postura daquela estrangeira. E apesar de um passado amaldiçoado, de saber que seria uma pária, estrangeira, sem direitos civis, sem direitos religiosos, Rute vai assim mesmo, sem saber o que lhe aguarda. A recepção de velhos conhecidos é dramática, porque Noemi voltava de uma tremenda jornada, despojada de bens, sem uma descendência, sem seu esposo e sem os filhos.
Noemi procurou uma associação de RESPIGADEIRAS, uma classe de pessoas que possuía diante das leis de Israel o direito de catar o milho, cereais, trigo, ou uvas que caíssem das sacolas ou do colo das trabalhadoras das fazendas, como auxílio aos mais desafortunados. Essa classe de pessoa vivia do resto, do que sobrava, do que porventura não fosse colhido, dependia da sorte de encontrar donos de fazendas que exercessem misericórdia e generosidade, pois os fazendeiros avarentos enchiam suas fazendas de coletores de cereais ou revezavam os grupos que voltariam para colher o que havia sobrado, não deixando quase nada que pudesse ser colhido. Outra prática é que os moços das fazendas escolhiam as mais bonitas e deixavam cair propositalmente parte do que colhessem em troca de “pequenos favores’ principalmente de origem sexual. Ou mesmo por aquelas pelas quais se apaixonavam, realmente.
Rute era estrangeira e a lei de israel, apesar de retirar dela muitos direitos em virtude de sua nacionalidade, concedia a ela o direito de catar trigo ou centeio como todas as outras.
Era o primeiro dia e Noemi lhe orienta a respigar cevada junto de uma das fazendas da região. Rute era belíssima. Era jovem e de feições completamente diferente dos israelitas. Ela era mais alva e mais alta do que as outras jovens, dada sua ascendência e possuía os olhos claros também. Era quase uma alemã em meio a um grupo descendência árabe. Ruiva, com os cabelos avermelhados (observando como será um de seus descendentes – Davi- e também a descrição de um dos filhos de Davi - Absalão).
De onde vem a menina dos cabelos vermelhos?
A menina de cabelos cor-de-fogo pediu permissão a um dos capatazes do grupo de colhedores e este concedeu que ela e outro grupo de jovens seguissem após, por dentro das fazendas por onde trabalhavam.
E assim se passou o dia inteiro. Ao entardecer um dos donos de uma das fazendas se aproximou e ao avistar a jovem perguntou quem ela era. O capataz contou que ela estava ali desde o amanhecer, e que trabalhara atrás deles por até aquele momento, parando para descansar somente ao meio-dia. Boaz era um antigo parente. Um homem nobre, descendente da tribo de judá, que conhecera Noemi muitos anos atrás. E já sabia da história e quem era aquela jovem. Só queria ter certeza de que ela era Rute. Ele a convidou e lhe disse que ela poderia ficar respigando em sua fazenda, sempre atrás daquele grupo que lhe era de confiança, ofereceu-lhe segurança de não ser molestada por outros segadores, assim como um abrigo para descansar, água para dessedentar-se. Rute fica espantada com tamanha acolhida. A gentileza do fazendeiro era demasiada e ela se curva em reverencia agradecendo.
Seus olhos faíscam com admiração e ternura.
-Porque és tão gracioso comigo? Você bem sabe a que povo
pertenço. Sou uma estrangeira, porque me favoreces assim?
Boaz fixa seus olhos em Rute. Seus olhos também brilham. De afeto. Como a muitos anos não acontecia. Ele sorri e com a voz mansa responde a Rute:
- Eu sei quem você é. Eu sei de onde você vem. E que deixou a casa de seus pais; E que deixou o conforto de sua família. E que é viúva, assim como a mulher, que um dia também foi estrangeira na sua terra. Da qual você tem cuidado tão bem. Você deixou tudo para cuidar de Noemi. Eu te quero perto de mim. Nos meus campos. Junto aos meus segadores. E nessa noite quero que jante comigo.
Rute se ajoelha e agradece. A muito ela não tem uma boa refeição.
A jovem de cabelos vermelhos destoa na multidão das serviçais e trabalhadores assentados entre imensos feixes de trigo colhidos. Os olhares de todos se voltam para Boaz que pessoalmente serve a bela jovem. Ele é que parte o queijo e a coloca nas mãos da esfomeada Rute. Ele busca a jarra de leite, o pão e o mel. Ele sorri ao ver como ela se lambuza comendo o os bolos de centeio untados com mel. Boaz oferece uma toalha e ela desajeitadamente limpa a face, agardecendo.
Rute come esfomeada, há dias, talvez meses, não comia com tanta abundancia.
Ela quase não consegue se levantar de tanto que come.
Ainda sobra para que ela possa levar para Noemi.
Quando ela volta para seu abrigo naquele dia, o faz carregada de cevada.
Após colher as espigas, no final da tarde Rute as bateu com um pilão e dos grãos recolheu quase trinta quilos. Volta recurvada para casa sob o peso de um saco cheio de cevada. Mais do que todas as outras colhedoras.
Boaz por sua vez dá ordem expressa para seus colhedores que deixem cair de modo proposital uma quantidade maior de cereal, onde quer que Rute se encontrasse colhendo.
Na fazenda um único comentário é o motivo das conversas de todos. Boaz está enamorado.
Noemi ao retorno de Rute pergunta desconfiada:
- Filha, onde você esteve?
Rute conta o que aconteceu. Noemi reconhece a Boaz como parente e se alegra. Percebe o que esta acontecendo. E percebe que pode ser o esposo que Rute poderia alcançar, assim como um nome e ter condições de sustento. Mesmo uma descendência.
Mais do que isso...
Noemi balbucia: ...O sapato... Calçar o sapato..
Rute: O quê? Calçar o que? Eu já estou calçada...
Boaz como parente próximo poderia resgatar as terras que um dia pertenceram a Elimeleque, seu esposo, e que seria direito de seus filhos, também mortos. Rute era esposa de um de seus filhos, mas pelo fato das terras já não pertencerem mais a sua família, não poderia ter direito as terras hereditárias. A cada quarenta e nove anos uma festa acontecia em que os terrenos voltavam aos seus antigos possuidores, conforme a lei judaica. Mesmo que a pobreza ocorresse numa geração, a próxima deveria devolver aos antigos herdeiros as antigas propriedades. Mas, seus filhos e marido estavam mortos, e na época da devolução, não haveria herdeiros para reivindicá-las. A lei do resgate não favorecia a esposa do falecido.
Noemi corre até seus parcos pertences e procura entre os objetos algo que lhe tem especial valor.
Então retira uma pra de sandálias gastos, feitas de couro rudimentar que um dia pertenceram a Elimeleque. Levantas-as em direção a Rute e exclama novamente:
- Calçar os sapatos...
Havia uma possibilidade. Era chamada LEI do LEVIRATO, em que um primo, tio ou irmão, casava-se com a esposa do seu parente falecido, e invocava para ela e o direito da herança hereditária. Quando tivesse, porém, filhos com a viúva, o sobrenome dos filhos não seria o seu. Seria o do falecido, ou o nome da viúva. Como se o parente NÃO TIVESSE MORRIDO. Os filhos que tivesse eram como se não fossem somente seus, e sim TAMBÉM da pessoa que morreu. O nome do irmão ou parente próximo continuaria a existir e no tempo do RESGATE, as terras continuariam na família dos filhos de sua esposa.
Desde que a cerimônia de calçar o sapato fosse realizada.
Noemi agirá então como casamenteira. Ordena que Rute se adorne, se banhe, se perfume e volte à fazenda de Boaz, mas com o manto sobre sua cabeça, de tal modo que ele não a reconheça. Noemi pede que ela seja ousada, que verifique qual o local da fazenda ele estará dormindo e que sorrateiramente se aproxime e se deite aos seus pés. E diz que Boaz falará depois com ela, sobre o que deverá fazer.
O plano prossegue e ao anoitecer ela se aproxima da estalagem, passa por entre os capatazes, e descobrindo onde Boaz está dormindo, se aproxima e deita-se aos seus pés. Perto da meia-noite Boaz estica-se e seus pés tocam em Rute.
Ele se assusta e pergunta quem está aos seus pés. Rute responde que é ela e de modo impensado, ELA é que faz para Boaz um pedido:
- Meus senhor, estende teu manto em minha direção.. DESPOSA-ME! Casa comigo! Resgata as terras de Noemi!
Perto da meia noite um homem espantado observa as madeixas vermelhas e os olhos da jovem por que já sente grande afeição, aos pés de sua cama... lhe pedindo em casamento..
Apesar da ousadia, da quebra de protocolos, Boaz admira-se da coragem inaudita de Rute, e sendo já um “cinquentão”, recebendo no meio da noite a queima-roupa uma proposta de casamento de uma adolescente, já tendo o coração balançado desde a primeira vez que a viu, concorda imediatamente.
- É claro que aceito...
Ele pede a Rute que aguarde o amanhecer.
Ele quer invocar a lei que poderá devolver os bens a linhagem de Noemi. Mas existe um primo, que é mais próximo do que ele. Para que possa desposar a Rute, este outro terá que dar para ele este direito.
Para que ele possa calçar o sapato, outro terá que descalçar-se.
É manhã e nas portas da cidade o tumulto começou.
Os anciãos se assentam no tribunal recém criado as portas de Belém, onde Boaz solicitará o direito de desposar a menina de cabelos vermelhos.
Terá início a cerimônia de calçar sapatos.
Diante dos anciãos ele aponta para o único que possui diante da Lei maior direito a mão de Rute do que ele. O caráter da jovem era conhecido por toda a cidade. Quando Boaz solicita a contragosto ao primo de Noemi que despose a Rute para que possa cumprir a lei, imediatamente este se levanta e diz que irá desposá-la. Boaz entende bem o motivo do primo mesquinho.
Então deixa bem claro, que em nenhum momento as terras de Noemi seriam suas. Que os filhos que teria, não levariam seu nome. Que ainda, essas crianças herdariam como filhos, mas não levariam seu nome à posteridade.
Os verdadeiros motivos que levaram o primo a aceitar tão depressa o casamento arranjado caem por terra.
- Eu declino. Não quero perder minhas terras para filhos que sequer terão meu sobrenome.
Boaz:
- Então tira teu sapato.
O primo descalça as sandálias, as quais Boaz ergue na frente da multidão:
- Eu assumo o direito que o outro não quer exercer. Ele tirou as sandálias, descalço está!
Eu assumo os deveres de dar continuidade a linhagem de Noemi.
Diante da aturdida multidão, Boaz se abaixa, retira suas sandálias e calça as que seu primo retirou.
Quando fica de pé seus olhos brilham.
- Eu assumo Rute como minha esposa.
A cidade festejou por mais de sete dias.
60 anos depois de Rute nascer:
Uma criança sardenta de cabelos ruivos corre atrás das ovelhas de seu pai.
Sua avó o observa, rindo de suas peraltices.
- Davi! Vem comer teu guisado! Para de correr atrás das ovelhas! Vem logo e obedece tua avó!!!
Um milênio depois de Rute nascer:
Uma menina de nome Maria e seu esposo José procuram uma estalagem na antiga cidade de Belém de Efrata. Maria está grávida e dará luz a uma criança especial. Ela e seu esposo descendem de uma antiga linhagem real. São descendentes de Davi. Do famoso rei Davi, pai de Salomão, herdeiro ao trono da tribo de judá.
Naquela noite anjos anunciaram a um grupo de pastores que o Rei dos Reis havia nascido.
Jesus, descendente de Davi.
Descendente de uma Moabita.
De nome Rute.
Welington José Ferreira
www.welingtoncorp.xpg.com.br
A leste de Canaã e a oeste das montanhas de Moabe, num dos terrenos mais ásperos do deserto da Judéia, vê-se um profundo canal no centro do qual existe um lago com uma área aproximada de 930 km2. Esse corpo d'agua é chamado, em hebraico, "Inhame Hamelah", que significa "o mar Salgado". São 77 km de comprimento (norte-sul) e cerca de 16 km, na maior largura. A profundidade máxima do lago é de cerca de 400 m, estando sua superfície a pouco mais de 400 metros abaixo do nível do mar. Trata-se do local mais baixo da terra. Por milhares de anos, as águas do Jordão, ricas em minerais, abasteceram o lago. A elevada evaporação provocada pelo clima do deserto aumentou a salinidade para índices próximos a 30% (nos demais mares, 3% a 6% ), o que favoreceu a formação de cristais na superfície. A composição mineral do lago é de: 67% de cloro, 17% de magnésio e 10% de sódio; além de outros sais em menor percentual. A presença do enxofre é de 0,2%.Belíssimas formações de sal cristalizado, na superfície do Mar Morto. Antigos escritos judeus identificam esse corpo d'água como "Inhame S'dom" - "o mar de Sodoma" -, nome da cidade destruída por Deus e que era localizada em suas margens meridionais (Gn 19). Alguns peregrinos, em tempos antigos, chamaram-no de "o Mar do Diabo" ao mentalizarem o diabo centelhando, ao tomar banho nas águas do lago". Os filósofos gregos Aristóteles e Strabo escreveram sobre o lugar e chamamdo-o de "Lacus Asphaltis", ou "Lago de Asfalto".Mas, para os gregos antigos, a desolação da área e a convicção que nenhuma vida poderia sobreviver nela, foi inspiração para um nome novo: "o Mar Morto".
Cerca de 900 anos antes de Rute nascer.
Um homem triste olha para uma formação de salitre que lembra um corpo feminino caído. Onde havia uma imensa campina, bosques verdejantes de beleza ímpar, agora se estendia um imenso mar. Às margens daquele mar estranho, ainda exalando vapores de ocre odor, com o corpo coberto de fina camada de sal trazido pelo vento inconstante, um homem chora a perda de sua esposa. Ele toca na formação de sal, que parece uma mulher caída, tremendo se levanta e caminha sem direção. Ainda tremia do estrondo e do clarão que transformou as cidades de sua moradia em lenda, em conto, em agouro, numa ruína de perdição, de ruas cobertas a quatrocentos metros abaixo de onde os olhos avistavam a superfície do mar morto.
Ele, caldeu, lembra da cidade de Ur, das cadeiras e mesas das salas de aula, das danças e festividades de sua terra natal. Da cidade dos mil deuses, que há tanto tempo deixara para trás. Desde que saíra tudo aconteceu de errado. Seguiu com seu tio que disse ter tido visões com um Deus desconhecido que o chamava para uma terra prometida, com a qual também desejou sonhar. E lembra que desobedeceu a ordem do Deus estranho, que só havia chamado a seu tio àquela estranha aventura. Ele não foi convidado. Por vinte anos ele vagueou sem rumo, porque simplesmente não tinha direção. Nenhuma direção.
Ló chegou as campinas de Moabe junto com suas duas filhas, poucos dias depois da hecatombe que sinistrou a Sodoma e Gomorra. Desiludido com os homens, dos quais ele, infelizmente, conheceu o lado pior, decidiu habitar os montes e as cavernas. Suas filhas sabiam que não se casariam, naquele ermo lugar, que só viria possuir cidades centenas de anos após a solitária peregrinação de Ló.
Numa noite sinistra, quando após alguns anos elas perderam a esperança de voltar a viver perto de alguma civilização, tomadas do horror de se transformarem em duas velhas desamparadas, como bruxas morando no interior de cavernas e temendo que após décadas de solidão, lobos as encontrassem já sem forças para se defender, elas decidem que devem gerar filhos, mesmo que seja a custa de seu próprio pai.
Nessa noite perdida entre as noites de antigos povos, elas embebedam seu pai, e na madrugada envoltas na escuridão, sem nenhum pudor se deitam com ele. Sem ter plena consciência do que faz, ele as engravida. Um dos filhos desta noite sinistra se chamou Moabe.
Cerca de 430 anos antes de Rute nascer:
Um imenso grupo de gente, incontável multidão se aproximava lentamente da antiga planície. Ali habitavam os descendentes da noite que se perdeu na história.
Os descendentes viram ao longe por semanas uma tocha de fogo que se elevava aos céus, como um redemoinho em chamas que anunciava que os que tinham destruído o Egito, agora se aproximavam. Quando amanheceu os reis do recém fundado reino de Moabe receberam a delegação dos forasteiros que solicitaram passagem por suas terras. Ao longe a multidão, agora guarnecida de uma imensa nuvem que como coluna de fumaça se elevava a frente de uma estranha tenda, uma enorme tenda que sobressaia sobre as outras, aguardava a resposta.
Os reis num misto de inveja e terror, disseram não. Não lhes importava as crianças, os idosos ou o quanto iriam ganhar de tempo. Não permitiriam que aqueles deuses estranhos, nem sua coluna de fogo, nem a tal coluna de nuvem, passassem pela terra dos seus ancestrais.
Os antigos reis observam quando o ancião com o cajado perto da imensa tenda recebe a notícia de que não poderiam passar.
A massa imensa de gente levou dias para se por em marcha. E levaria meses para chegar aonde pretendiam. Mas, isso não era da conta dos soberanos de Moabe.
Muitas noites com insônia se passaram. Depois de muitos dias a tal coluna de fogo e a tal coluna de nuvem reapareceram e com elas aquela inumerável multidão.
Os reis de Moabe e de outras terras chamadas Mídia em terror incalculável resolveram convocar o poder das trevas para impedir que aquela marcha insana continuasse. De boca em boca foi passada a torpe mensagem:
- Convoquem a Balaão.
Na densa escuridão da noite, durante o período que os trovões levam, antes do próximo relampejar, trepidavam patas ferradas dos corcéis negros, ferrando as poças da lama ocre no caminho lamacento até a lendário castelo do feiticeiro mais poderoso da terra. O alvo dos olhos dos animais resplandecia, junto a sua escura crina a cada raio que os iluminava. Montado sobre o negro animal, os mensageiros e das terras distantes de Moabe, com suas indumentárias escuras e encharcadas, gritam para os guardas à frente dos gigantescos portais da antiga fortaleza, na qual Balaão habitava. As imensas portas são abaixadas, enquanto eles ainda chicoteiam os alazões, ao sonido agora ocre, do trote nas pedras lavradas, recobertas de liquens acinzentados, do pátio castelar.
Da sacada superior, uma sombria figura observa a chegada dos mensageiros midianitas e moabitas. Deixando para trás suas cansadas montarias, caminham como arrastassem a si mesmos, até o grande salão de pórfiro e granito, enquanto um sombrio ajudante vai murmurando algum aviso para aquele que se assenta sobre uma gigantesca cadeira adornada de púrpura e de madeira ricamente trabalhada. Quase um trono. O mensageiro entra solene pelas portas palacianas, subindo até o lugar do grande salão rodeado de colunas de rosacrocita. Eles param subitamente e se ajoelham, enquanto as abas de suas vestimentas molhadas enchem como um vestido o lugar onde se abaixam. Na verdade, usam todos capas. Negras. Aquele que está sentado não se vira para cumprimentá-los. De costas ainda, levanta uma das mãos esqueléticas fazendo um gesto com a ponta dos dedos, sob o olhar malévolo e olhos semicerrados do sombrio homem ao seu lado direito. Os mensageiros se levantam e caminham, enquanto suas sombras se projetam na cortinada das colunas, através da luz das lamparinas acesas com óleo de baleia albina. O ruído de suas botas de couro molhadas sobressai agora no silencioso salão, reverberando a cada passo sobre o pórfiro impecavelmente polido. Próximo ao homem assentado, quando se achegam, ajoelham novamente em reverência. Fala então um dos mensageiros de Moabe:
— Ó! poderoso feiticeiro. Nossos guerreiros dalém, nas terras distantes, que batalham já a longo tempo, necessitam dos préstimos de tuas maldições. Os reis de Moabe e de Mídia me enviaram a ti para que, encontrando mercê diante de ti, dignasses a conceder-nos teus dons sobrenaturais contra um terrível povo que vem do oriente.
Quebrava-se o silêncio sepulcral através do murmúrio do vento soprando entre as frestas das pedras nas paredes. Soando tal som como fosse um antigo órgão tubular. O olhar do sombrio homem ao lado do feiticeiro, semicerrou-se ainda mais.
Finalmente o antigo feiticeiro se levantou. Arrastou a estranha roupa cheia de cangas e cordas com ossos partidos e dentes em quantidade que batiam uns nos outros, enquanto se apoiava ao bordão que possuía uma pequena caveira na extremidade, completamente enegrecida. Em suas mãos um colar de conchas e pedras, dando diversas voltas em suas mãos cadavéricas. Ele aperta as conchas com suas velhas mãos enquanto estica o indicador com horrenda unha em direção ao mensageiro.
— Que queres, tu de Balaão? Sabes que sobre quem lançar minha maldição, maldito será por toda a eternidade. Irão secar as fontes e corredeiras de sua terra, seus filhos morrerão ainda jovens de peste e as virgens já não gerará mais. Virá fome sobre as cidades, sequidão sobre as pastagens, doença no gado e nos homens. Não ficarão fracas e inúteis as mãos dos hábeis arqueiros? Não semearia eu terror sobre toda a terra? Que queres de Balaão, servo de ninguém?
- O rei meu senhor pede teus serviços. E te recompensará regiamente.
Balaão se arrasta sobre o pórfiro com uma risada aterradora. Encurvado se dirige a mesa e tomando de um líquido viscoso e cor de sangue, derrama a taça de prata enquanto gotas do líquido vermelho se derramam pelo chão. Ele se volta ao mensageiro, enquanto o barulho do bordão ressoa em todo o salão a cada passo de sua perna coxa. Então fala:
E que povo morto é este, quem serão os coitados e miseráveis sobre os quais se abaterá a palavra da maldição, que se farão como fantasmas e cujas vidas separadas para o desespero serão, que nação é essa que desaparecerá de sobre a face da terra, essa que eu terei o infortúnio de maldizer?
Os mensageiros se calam.
Balaão olha curioso. E grita:
- Respondam-me para que não morram, ainda de pé, mensageiros tolos!
Os céus relampejaram neste instante, tornando o olhar de Balaão ainda mais assustador
- É o povo d’além mar, cujos deuses destruíram a terra do Egito, aquele que de noite vai a frente a coluna de fogo e que ao amanhecer é precedido pela coluna de nuvem.
A taça cai da mão de Balaão. Rapidamente ele expulsa os mensageiros, dizendo que depois dará uma resposta.
Na noite misteriosa e chuvosa, relampeja quando os dois ajudantes misturam junto com o velho bruxo as poções, repetindo as preces e invocações de sacerdotes da antiguidade, de escritos de línguas mortas, e ritos que já não existiam.
Deixando de lado os deuses de Mídia e Moabe, esquecendo-se das divindades dos heteus e jebuseus, Balaão invoca a divindade protetora do povo além do mar. E invoca aquele que conhece por El Shadai, El Elion e Senhor. Escolhe chamar-lhe por Senhor.
Quando o invoca, Ele sente uma estranha presença. Uma poderosa presença. É ele.
Senhor havia chegado.
Senhor se apresenta ao feiticeiro. Balaão conhece pouco a Senhor. Não exigia sacrifícios humanos. Não falava ou agia como os outros espíritos com tratava. Na madrugada, claramente Balaão ouviu uma voz. E sabia quem falava com ele. Era Senhor.
- Quem são estes homens que estão contigo?
Tremendo Balaão responde: Balaque, rei dos moabitas os enviou para amaldiçoar o povo que saiu do Egito.
Senhor responde:
- Você não o fará. Eles são benditos.
E então se cala. A voz nada mais falou. Um feiticeiro só amaldiçoa um povo, se obter acordo com os espíritos que guardam tal povo. Ele os invocaria e veria o que eles pediriam para atender a Balaão. Mas não havia acordo com Senhor. Ele não negociava. Jamais.
Contrariado ele despede aos mensageiros.
- Vão embora, mensageiros de ninguém. O espírito que guarda ao estranho povo impediu-me de amaldiçoar ao estranho povo. Vão. Vão e não voltem mais.
Quando os mensageiros chegam ao amanhecer, ainda chovia sobre as planícies de Moabe. Balaque se desespera. Envia seus mais nobres príncipes com riqueza e recompensa como nunca antes um feiticeiro na terra, jamais fora agraciado. Eles chegam com ovelhas em multidão, bois, cabras e camelos. Trazem especiarias, azeite e mel, passas e damascos, vinho e leite. Mantas púrpuras e carmesim, vestidos bordados de azul e ouro.
Seus olhos faíscam com a avareza. Riqueza inimaginável.
Ele finge não se interessar. Porém ao ver tamanha riqueza, Balaão decide tentar negociar com Senhor. Mais uma vez.
Ele insiste permissão, ao menos para ir com eles. Mas, dentro de si maquina um plano. Ele invocará outros deuses e certamente haverá mais poderosos que Senhor. Ele só precisa ir.
- Vá com eles. Ao amanhecer. Mas só farás o que eu te disser.
Balaão concorda. Mentindo. Ele se ajoelha, como se pudesse enganar sua verdadeira intenção.
Ainda de madrugada, antes que amanhecesse, inquieto, preparou sua velha montaria. A mula. A velha mula. Rico. Rico, ele pensava. Mas, Senhor escutava seu coração.
Na subida dos montes em direção as fronteiras de Moabe uma velha mula se assusta. O velho animal empaca ao sentir o poder espiritual e a luz que só ela, a mula, enxerga. As crinas no pescoço acinzentado do velho animal se arrepiam ao ver a estranha criatura. E seus olhos se fixam nas mãos do anjo que carregam uma espada incendiada. Na região montanhosa Ela, a mula, quase esmaga a perna de seu dono. Ele espanca a coitada e continua a íngreme subida. Outra vez o ser aparece. E só ela, a mula, consegue enxergá-lo. Desta vez Balaão é empurrado contra a encosta rochosa. Descendo furioso do animal, ele o chicoteia sem misericórdia. Em meio aos gritos da mula, um assombro. Ela se vira para Balaão e dotada de repentina inteligência, deixando de lado os zurros, contra tudo que poderia se esperar de tal animal, ela fala.
- Porque me espancas assim? Já fiz algo contigo assim, nos muitos anos que sou tua montaria?
Balaão era um feiticeiro. Adivinhava pelas nuvens. Orava para árvores sagradas. Acostumado aos ruídos estranhos e as bruxuleantes manifestações de todas sortes de espíritos, das divindades em formas de animais, não estranha o acontecimento. Os animais em seus sonhos falavam. Ele simplesmente responde como se fosse natural conversar com um animal.
- Maldito animal, por duas vezes você quase me esmagou a perna!
Então seus olhos são abertos. Vê o que só sua mula via. O ser com uma espada incandescente. Ele cai de joelhos enquanto ouve agora, não mais a voz da mula, mas a voz do ser que se interpunha em seu caminho:
- Se teu animal não tivesse impedido, tu agora estarias morto. Foi essa a ordem que foi te dada?
- Não.
- Espera o amanhecer e vai com aqueles que eu ordenei.
A visão se desfaz. Balaão entende que nada pode esconder diante daquele, que tudo vê.
O feiticeiro volta para casa e ao amanhecer sobe até as montanhas, acompanhado de comitiva real dos moabitas.
Então chega ao cume dos montes ao entardecer, no momento em que a nuvem branca que se eleva da terra a frente da multidão, próxima a grande tenda, tornár-se em chamas e incandescer. A face de Balaão e as terras de Moabe se iluminam com as chamas da coluna que se ergue na frente da tenda do santuário, do Deus do povo d´além do mar. Balaão sabe que nada poderá fazer. Invoca suas divindades e faz seus ritos, mas não são os espíritos ancestrais que vão ao seu encontro. É ele. O protetor daquele povo. Senhor. El Shaddai. Tomado de um poder que arrebata suas entranhas e que lhe enche de palavras, profere:
De Arã, me mandou trazer Balaque, rei dos moabitas, das montanhas do oriente, dizendo: Vem, amaldiçoa-me a Jacó; e vem, denuncia a Israel.
Como amaldiçoarei o que Deus não amaldiçoa? E como denunciarei, quando o SENHOR não denuncia?
Porque do cume das penhas o vejo, e dos outeiros o contemplo; eis que este povo habitará só, e entre as nações não será contado.
Quem contará o pó de Jacó e o número da quarta parte de Israel? Que a minha alma morra da morte dos justos, e seja o meu fim como o seu.
Balaão sabia que ao pronunciar aquilo, perdia todas as riquezas prometidas. Mas nada podia fazer. Era o Senhor que falava através dele.
Quando descem do monte naquela noite, ele ainda almeja a riqueza que lhe escapou. Ainda anseia pelo ouro que lhe foi ofertado.
Então sua alma de feiticeiro fala mais forte, do que o dia em que se tornou profeta.
Ele olha para Balaque e diz:
- A única chance de Moabe, é que eles se afastem do Senhor. Usem suas mulheres mais belas. Seus ritos mais torpes. Mexam com o desejo humano. Tornem os filhos deste povo, adoradores de deuses desta terra. Contaminem sua herança. E então, vencereis...
Os conselhos de Balaâo são seguidos a risca. Milhares de mulheres moabitas e midianitas são convocadas para festividades que durariam semanas, concedidas as mais nefastas e torpes divindades de Canaã. E os ritos que misturavam prazer e vinho; incenso e orgias, contaminou de modo profundo a Israel.
Até que veio a praga. E milhares morreram enfermos.
Meses se passaram quando outra comitiva convocou o mesmo Balaão. Agora para uma guerra. Israel, tendo Moisés como comandante viria contra as forças de Balaque e Moabe.
Os exércitos se aproximam numa multidão considerável. Ao longe se destaca a figura torpe do bruxo dos bruxos. Segurando seu bastão enegrecido e invocando suas divindades, qual um sacerdote de poderes negros, ele amaldiçoa ao exército inimigo. Ele amaldiçoa a Moisés.
O profeta olha para o imenso exército e experiente exército. Olha para os doze mil separados contra a superioridade inimiga.
E de longe, encara a Balaão. O cajado negro levantado sobre o monte o denuncia.
Um segundo bastão é levantado. O cajado de Moisés. E Israel parte para a batalha sangrenta.
O exército do mago contra o exército do profeta.
Não. Contra o exército de Senhor.
Naquele entardecer um exército inteiro morre, junto ao seu feiticeiro.
Os moabitas foram proibidos de sequer se aproximar da tenda da congregação. Nenhuma geração jamais teria o direito de adorar ao Deus de Israel nem na tenda da congregação, nem no templo que um dia se ergueria em israel.
Nenhuma geração...
430 anos após a morte de Balaão.
A história de Rute
Capital de Moabe – Kir Moabe
A crise econômica tomou o oriente médio de surpresa. Meses de estiagem deixaram os pastos israelitas secos. Antigas fazendas, um dia célebres por seus produtos, agora eram sítios abandonados. Cada manhã as cidades israelitas acordavam com o monótono som das moedeiras que desde cedo batiam em seus pilões de cedro os grãos colhidos no dia anterior. Agora, em muitas cidades israelitas o que ouvia era o silencio.
Nessa época de crise, cerca de 1100 anos antes de Cristo, uma família judaica emigra para um país chamado Moabe em busca de melhores condições de vida. A família é composta de um casal e seus dois filhos. Sai então de Belém de Efrata na região chamada Judéia, descendentes de uma das doze tribos, a tribo de Judá. Noemi, seu esposo Elimeleque, e seus dois filhos, Maalom e Quelion.
Noemi: - Querido, temos que ir mesmo? Não há outra solução, é uma terra estranha, de deuses estranhos. Os costumes dos moabitas são distintos dos nossos...
Elimeleque: - Noemi, tu sabes que os pastos secaram. Nossas economias se dissipam rapidamente. Vendemos as terras que pertenceram aos nossos pais. Devemos ter esperança, quem sabe Deus não se mostra propício para que encontremos famílias que nos acolham, uma terra para semear e colher.
Campinas de Moabe
Mas a sorte não lhes favorece. Em Moabe veio a falecer Elimeleque, deixando Noemi viúva com seus dois filhos.
Pouco após a morte de Elimeleque, uma grande festa é dada por uma nobre família moabita. Duas irmãs festejevam a paixão e a alegria de se casarem na mesma época. As pétalas de flores são jogadas abundantemente no caminho das jovens enfeitadas no dia de seu casamento. Noemi ainda pesarosa da morte de seu esposo encontra consolo na chegada de duas meninas e um novo início em sua vida.
Seus filhos casaram-se em Moabe, com duas jovens chamadas Órfã e Rute.
Por alguns meses tudo melhorava. Foi quando a notícia do campo chegou. Um acidente acontecera. Um boi ainda não amansado ferira gravemente ao filho mais velho. Maalon não resistiu à gravidade dos ferimentos e então morreu.
Rute perdera seu esposo e chorava desconsolada abraçada com sua irmã, Órfã.
Seis meses se passam. Um grupo de nômades tenta assaltar as ovelhas da fazenda de seus sogros. Quilioon os enfrenta bravamente. Os afugenta, mas se fere gravemente no combate, vindo também a falecer.
Órfã agora enviuvava também, e era ela que agora chorava sobre os braços de sua irmã.
Noemi havia perdido a tudo que possuía. Terras, familiares e mesmo a esperança. Desamparada em terra estrangeira, chegam notícias a Noemi que os pastos reverdeciam e que a economia de Israel estava crescendo novamente.
Ela se preparou para partir de Moabe, mas suas noras quiseram acompanhá-la. Ela insistiu para que não fizessem isso, para que voltassem para casa de seus pais, porque mesmo voltando para sua terra, não possuía mais nenhuma possessão, que vendera para financiar sua estadia em Moabe. Voltava para a cidade natal sem perspectivas, com um futuro incerto. Diz que está velha demais para ter novos filhos para que elas possam desposar. Noemi abençoa suas noras, lembra de como foi bem tratada na sua estada em Moabe e deseja que elas tenham paz, abundancia e possam casar-se novamente.
Órfã, diante de tantos argumentos, chora e desiste de acompanhá-la, voltando para casa de seus pais. Rute permanece impassível, mesmo diante de um futuro tão pouco promissor, mesmo diante da insistência de Noemi para que ela retorne para o conforto da casa de seus pais.
Rute simplesmente diz:
- Onde quer que você for, eu vou te seguir. Tua nação será a minha. Teu Deus será o meu Deus. Onde você for enterrada, aí serei eu. Nada se não a própria morte poderá impedir que eu te acompanhe.
E assim foi com Noemi naquela viagem insólita, para um destino sem amanhã.
Despedindo-se de seus pais, ela acompanha a desafortunada Noemi.
Quando alguns dias depois elas chegam na cidade, as notícias sob sua vinda já lhe antecediam. E todos estavam admirados tanto pela tragédia que se abatera sobre sua família, como pelo fato do tremendo amor que Rute demonstrara a uma israelita.
Por séculos Moabe e Israel tiveram sérias crises, guerras, desavenças e preconceitos, em virtude de terríveis fatos entre a história dos dois povos no passado. Os moabitas, foram proibidos de ADORAREM a Deus na tenda da Congregação, não poderiam realizar sacrifícios ao Deus de Israel, tamanha era a diferença que existia entre os dois povos.
Reis moabitas impediram em tempos idos que o povo de Israel sob a direção de Moisés transitasse em suas terras, em direção a terra prometida, o que fez com que milhares de mulheres e crianças por cerca de 40 dias ou mais enfrentassem o deserto numa difícil caminhada. Certa feita, reis moabitas contratam um feiticeiro para amaldiçoar a Israel.
Noutra aceitam os conselhos para cativarem os israelitas para cultos onde havia orgias e prostituição cultual, onde milhares de adolescentes ‘se entregavam’ para cativar o coração dos israelitas à certas divindades imorais dos Moabitas. Durante séculos os moabitas roubaram as fazendas, fizeram coalizão com outros povos para destruição de cidades israelitas. Além dos problemas políticos, das guerras, havia uma questão da origem dos Moabitas. Eles eram vistos como “o povo que descendeu de um incesto” por herança do nascimento de Moabe, pai de todos os moabitas.
Depois de escapar da destruição de Sodoma e Gomorra, Ló, sobrinho de Abraão, desiludido com a vida em sociedade, torna-se um ermitão, morando em cavernas das regiões montanhosas. Lá suas filhas, após alguns semanas de afastamento das cidades e impedidas de se casarem pelas circunstancias, engendram um plano, embebedam seu pai por duas noites e ambas se deitam com ele, engravidando ambas e dando luz a dois filhos: Amom e Moabe.
O avô e pai de Moabe, Ló, por sua vez também têm uma história de desilusões e erros. Morou em duas das mais corruptas cidades que já existiram, perdeu sua esposa junto ao mar morto por causa do Juízo divino sobre essas cidades; perdeu seus bens; certa feita fora aprisionado e seqüestrado pelos reis que um dia iriam originar a Babilônia; Ló saiu de Ur dos caldeus junto com Abraaão, quando Deus chamou SOMENTE a Abraão para ir ao lugar onde todas essas coisas lhe ocorreram. Ele seguiu junto a um homem que fora chamado por Deus para realização de algo, contra a ordem dada a esse mesmo homem: “Sai da casa de teus parentes, deixa para trás teus parentes”. Ló era parente de Abraão. Entende-se então o espanto dos habitantes de Belém pela chegada e postura daquela estrangeira. E apesar de um passado amaldiçoado, de saber que seria uma pária, estrangeira, sem direitos civis, sem direitos religiosos, Rute vai assim mesmo, sem saber o que lhe aguarda. A recepção de velhos conhecidos é dramática, porque Noemi voltava de uma tremenda jornada, despojada de bens, sem uma descendência, sem seu esposo e sem os filhos.
Noemi procurou uma associação de RESPIGADEIRAS, uma classe de pessoas que possuía diante das leis de Israel o direito de catar o milho, cereais, trigo, ou uvas que caíssem das sacolas ou do colo das trabalhadoras das fazendas, como auxílio aos mais desafortunados. Essa classe de pessoa vivia do resto, do que sobrava, do que porventura não fosse colhido, dependia da sorte de encontrar donos de fazendas que exercessem misericórdia e generosidade, pois os fazendeiros avarentos enchiam suas fazendas de coletores de cereais ou revezavam os grupos que voltariam para colher o que havia sobrado, não deixando quase nada que pudesse ser colhido. Outra prática é que os moços das fazendas escolhiam as mais bonitas e deixavam cair propositalmente parte do que colhessem em troca de “pequenos favores’ principalmente de origem sexual. Ou mesmo por aquelas pelas quais se apaixonavam, realmente.
Rute era estrangeira e a lei de israel, apesar de retirar dela muitos direitos em virtude de sua nacionalidade, concedia a ela o direito de catar trigo ou centeio como todas as outras.
Era o primeiro dia e Noemi lhe orienta a respigar cevada junto de uma das fazendas da região. Rute era belíssima. Era jovem e de feições completamente diferente dos israelitas. Ela era mais alva e mais alta do que as outras jovens, dada sua ascendência e possuía os olhos claros também. Era quase uma alemã em meio a um grupo descendência árabe. Ruiva, com os cabelos avermelhados (observando como será um de seus descendentes – Davi- e também a descrição de um dos filhos de Davi - Absalão).
De onde vem a menina dos cabelos vermelhos?
A menina de cabelos cor-de-fogo pediu permissão a um dos capatazes do grupo de colhedores e este concedeu que ela e outro grupo de jovens seguissem após, por dentro das fazendas por onde trabalhavam.
E assim se passou o dia inteiro. Ao entardecer um dos donos de uma das fazendas se aproximou e ao avistar a jovem perguntou quem ela era. O capataz contou que ela estava ali desde o amanhecer, e que trabalhara atrás deles por até aquele momento, parando para descansar somente ao meio-dia. Boaz era um antigo parente. Um homem nobre, descendente da tribo de judá, que conhecera Noemi muitos anos atrás. E já sabia da história e quem era aquela jovem. Só queria ter certeza de que ela era Rute. Ele a convidou e lhe disse que ela poderia ficar respigando em sua fazenda, sempre atrás daquele grupo que lhe era de confiança, ofereceu-lhe segurança de não ser molestada por outros segadores, assim como um abrigo para descansar, água para dessedentar-se. Rute fica espantada com tamanha acolhida. A gentileza do fazendeiro era demasiada e ela se curva em reverencia agradecendo.
Seus olhos faíscam com admiração e ternura.
-Porque és tão gracioso comigo? Você bem sabe a que povo
pertenço. Sou uma estrangeira, porque me favoreces assim?
Boaz fixa seus olhos em Rute. Seus olhos também brilham. De afeto. Como a muitos anos não acontecia. Ele sorri e com a voz mansa responde a Rute:
- Eu sei quem você é. Eu sei de onde você vem. E que deixou a casa de seus pais; E que deixou o conforto de sua família. E que é viúva, assim como a mulher, que um dia também foi estrangeira na sua terra. Da qual você tem cuidado tão bem. Você deixou tudo para cuidar de Noemi. Eu te quero perto de mim. Nos meus campos. Junto aos meus segadores. E nessa noite quero que jante comigo.
Rute se ajoelha e agradece. A muito ela não tem uma boa refeição.
A jovem de cabelos vermelhos destoa na multidão das serviçais e trabalhadores assentados entre imensos feixes de trigo colhidos. Os olhares de todos se voltam para Boaz que pessoalmente serve a bela jovem. Ele é que parte o queijo e a coloca nas mãos da esfomeada Rute. Ele busca a jarra de leite, o pão e o mel. Ele sorri ao ver como ela se lambuza comendo o os bolos de centeio untados com mel. Boaz oferece uma toalha e ela desajeitadamente limpa a face, agardecendo.
Rute come esfomeada, há dias, talvez meses, não comia com tanta abundancia.
Ela quase não consegue se levantar de tanto que come.
Ainda sobra para que ela possa levar para Noemi.
Quando ela volta para seu abrigo naquele dia, o faz carregada de cevada.
Após colher as espigas, no final da tarde Rute as bateu com um pilão e dos grãos recolheu quase trinta quilos. Volta recurvada para casa sob o peso de um saco cheio de cevada. Mais do que todas as outras colhedoras.
Boaz por sua vez dá ordem expressa para seus colhedores que deixem cair de modo proposital uma quantidade maior de cereal, onde quer que Rute se encontrasse colhendo.
Na fazenda um único comentário é o motivo das conversas de todos. Boaz está enamorado.
Noemi ao retorno de Rute pergunta desconfiada:
- Filha, onde você esteve?
Rute conta o que aconteceu. Noemi reconhece a Boaz como parente e se alegra. Percebe o que esta acontecendo. E percebe que pode ser o esposo que Rute poderia alcançar, assim como um nome e ter condições de sustento. Mesmo uma descendência.
Mais do que isso...
Noemi balbucia: ...O sapato... Calçar o sapato..
Rute: O quê? Calçar o que? Eu já estou calçada...
Boaz como parente próximo poderia resgatar as terras que um dia pertenceram a Elimeleque, seu esposo, e que seria direito de seus filhos, também mortos. Rute era esposa de um de seus filhos, mas pelo fato das terras já não pertencerem mais a sua família, não poderia ter direito as terras hereditárias. A cada quarenta e nove anos uma festa acontecia em que os terrenos voltavam aos seus antigos possuidores, conforme a lei judaica. Mesmo que a pobreza ocorresse numa geração, a próxima deveria devolver aos antigos herdeiros as antigas propriedades. Mas, seus filhos e marido estavam mortos, e na época da devolução, não haveria herdeiros para reivindicá-las. A lei do resgate não favorecia a esposa do falecido.
Noemi corre até seus parcos pertences e procura entre os objetos algo que lhe tem especial valor.
Então retira uma pra de sandálias gastos, feitas de couro rudimentar que um dia pertenceram a Elimeleque. Levantas-as em direção a Rute e exclama novamente:
- Calçar os sapatos...
Havia uma possibilidade. Era chamada LEI do LEVIRATO, em que um primo, tio ou irmão, casava-se com a esposa do seu parente falecido, e invocava para ela e o direito da herança hereditária. Quando tivesse, porém, filhos com a viúva, o sobrenome dos filhos não seria o seu. Seria o do falecido, ou o nome da viúva. Como se o parente NÃO TIVESSE MORRIDO. Os filhos que tivesse eram como se não fossem somente seus, e sim TAMBÉM da pessoa que morreu. O nome do irmão ou parente próximo continuaria a existir e no tempo do RESGATE, as terras continuariam na família dos filhos de sua esposa.
Desde que a cerimônia de calçar o sapato fosse realizada.
Noemi agirá então como casamenteira. Ordena que Rute se adorne, se banhe, se perfume e volte à fazenda de Boaz, mas com o manto sobre sua cabeça, de tal modo que ele não a reconheça. Noemi pede que ela seja ousada, que verifique qual o local da fazenda ele estará dormindo e que sorrateiramente se aproxime e se deite aos seus pés. E diz que Boaz falará depois com ela, sobre o que deverá fazer.
O plano prossegue e ao anoitecer ela se aproxima da estalagem, passa por entre os capatazes, e descobrindo onde Boaz está dormindo, se aproxima e deita-se aos seus pés. Perto da meia-noite Boaz estica-se e seus pés tocam em Rute.
Ele se assusta e pergunta quem está aos seus pés. Rute responde que é ela e de modo impensado, ELA é que faz para Boaz um pedido:
- Meus senhor, estende teu manto em minha direção.. DESPOSA-ME! Casa comigo! Resgata as terras de Noemi!
Perto da meia noite um homem espantado observa as madeixas vermelhas e os olhos da jovem por que já sente grande afeição, aos pés de sua cama... lhe pedindo em casamento..
Apesar da ousadia, da quebra de protocolos, Boaz admira-se da coragem inaudita de Rute, e sendo já um “cinquentão”, recebendo no meio da noite a queima-roupa uma proposta de casamento de uma adolescente, já tendo o coração balançado desde a primeira vez que a viu, concorda imediatamente.
- É claro que aceito...
Ele pede a Rute que aguarde o amanhecer.
Ele quer invocar a lei que poderá devolver os bens a linhagem de Noemi. Mas existe um primo, que é mais próximo do que ele. Para que possa desposar a Rute, este outro terá que dar para ele este direito.
Para que ele possa calçar o sapato, outro terá que descalçar-se.
É manhã e nas portas da cidade o tumulto começou.
Os anciãos se assentam no tribunal recém criado as portas de Belém, onde Boaz solicitará o direito de desposar a menina de cabelos vermelhos.
Terá início a cerimônia de calçar sapatos.
Diante dos anciãos ele aponta para o único que possui diante da Lei maior direito a mão de Rute do que ele. O caráter da jovem era conhecido por toda a cidade. Quando Boaz solicita a contragosto ao primo de Noemi que despose a Rute para que possa cumprir a lei, imediatamente este se levanta e diz que irá desposá-la. Boaz entende bem o motivo do primo mesquinho.
Então deixa bem claro, que em nenhum momento as terras de Noemi seriam suas. Que os filhos que teria, não levariam seu nome. Que ainda, essas crianças herdariam como filhos, mas não levariam seu nome à posteridade.
Os verdadeiros motivos que levaram o primo a aceitar tão depressa o casamento arranjado caem por terra.
- Eu declino. Não quero perder minhas terras para filhos que sequer terão meu sobrenome.
Boaz:
- Então tira teu sapato.
O primo descalça as sandálias, as quais Boaz ergue na frente da multidão:
- Eu assumo o direito que o outro não quer exercer. Ele tirou as sandálias, descalço está!
Eu assumo os deveres de dar continuidade a linhagem de Noemi.
Diante da aturdida multidão, Boaz se abaixa, retira suas sandálias e calça as que seu primo retirou.
Quando fica de pé seus olhos brilham.
- Eu assumo Rute como minha esposa.
A cidade festejou por mais de sete dias.
60 anos depois de Rute nascer:
Uma criança sardenta de cabelos ruivos corre atrás das ovelhas de seu pai.
Sua avó o observa, rindo de suas peraltices.
- Davi! Vem comer teu guisado! Para de correr atrás das ovelhas! Vem logo e obedece tua avó!!!
Um milênio depois de Rute nascer:
Uma menina de nome Maria e seu esposo José procuram uma estalagem na antiga cidade de Belém de Efrata. Maria está grávida e dará luz a uma criança especial. Ela e seu esposo descendem de uma antiga linhagem real. São descendentes de Davi. Do famoso rei Davi, pai de Salomão, herdeiro ao trono da tribo de judá.
Naquela noite anjos anunciaram a um grupo de pastores que o Rei dos Reis havia nascido.
Jesus, descendente de Davi.
Descendente de uma Moabita.
De nome Rute.
Welington José Ferreira
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