sexta-feira, 23 de novembro de 2012

NARCISA


Narcisa nasceu com 2300 g numa tarde de inicio de primavera dia 22 em setembro no Hospital Sírio Libanês, filha de Bellinda Marcondes Andrada, carioca de 26 anos, de olhos castanhos e tês branca, natural de Niterói, que odiava ser chamada de papagoiaba, dona de uma pequena loja de artesanato, descendente de italianos e filha de Geraldo Gusmão Lancellote, gaucho que imigrou dos pampas ao Rio de Janeiro para trabalhar numa Consultoria de software, dono de um largo sorriso, robusto e de avós alemães. Os amigos de Geraldo gostavam de dizer que era bom ter um participante da Tavola Redonda como amigo.  Moravam na Tijuca, próximos a Conde de Bonfim, numa velha casa em constantes reformas. À menina deram o nome de Narcisa. Narcisa Marcondes Andrada Lancellote.  
Narcisa crescia normalmente como qualquer criança de sua idade. Pelo menos até os dois anos de idade. Foi quando os pais perceberam que sua filha era um pouco “diferente” das demais crianças de sua idade. Haviam comprado um quebra-cabeças de
5000 peças e estavam montando ele no chão da sala, enquanto Narcisa estava sentada no sofá apertando aleatóriamente os botões do controle remoto. Bellinda foi até a cozinha pegar alguma coisa para comer e Geraldo atender ao telefone. 
Dois minutos depois quando chegaram na sala viram todas as peças do quebra-cabeça espalhadas por toda a sala, pelos corredores, sobre as almofadas, em cima dos móveis. Sobre a televisão. E Narcisa olhando atentamente a sua obra. Os pais riram com o quadro caótico das peças espalhadas por toda a casa. Mas foram parando de rir a medida que a menina foi até o quarto e trazendo na mão uma peça aleatória a encaixou exatamente onde deveria se encaixar. E depois foi até a televisão e encaixou a terceira. E depois foi ao final do corredor e trouxe a quarta peça. Por incansáveis três horas a menina de dois anos andava pela casa e sempre trazia as peças exatas. Duas, seis, dez peças de cada vez. Então ela completou o gigantesco quebra-cabeça, sentou no sofá, sorrindo se deitou e dormiu exausta, na frente dos assustados pais.



Narcisa sorria.
Sinistra e discretamente.
São exatas oito horas da manhã. Narcisa, sete anos de pura e genialidade maligna, caminha lenta e suavemente em direção ao monitor de seu andar na escola em que reside. Faltam 20 minutos para o fim do mundo, e ela será a causadora dele.  Esfregando as lentes de seus grossos óculos, Fernando, o zeloso monitor das crianças irrequietas e festivas do Colégio Arte e Intenção, não imagina que em sua direção naquele exato momento caminhava o quinto cavaleiro do apocalipse.
A pequena e doce Narcisa. De olhos meigos e lindas tranças negras que ultrapassavam sua cintura, olhos acinzentados e brilhantes, pele branca como de uma harpia e lábios vermelhos como tomate colhido na véspera.
E tendo no coração a tormenta.
Arrasta solenemente Matilda, sua sofrida boneca de pano, Fernando conhece a boneca encardida que Narcisa arrastava desde que entrou na pré-escola cerca de dois anos antes. Coincidentemente a mesma época do incêndio, da invasão das vespas, um pouco antes da explosão do microondas da cantina, logo após o curto-circuito causado pela inundação do segundo andar.
O a boneca sempre era arrastada por uma das pernas enquanto a cabeça ia batendo pelos degraus enquanto subia as escadas ou as descia, sempre correndo.
E eis que vinha Narcisa. Fernando passa a mão pelo nariz e levanta a lente em direção da menina, que fica meio distorcida na lente, parando como um fantasma diante de sua mesa no meio do corredor, imóvel.  
Fernando abaixa a cabeça em direção da menina que lhe sorri docemente. Por algum motivo estranho sempre que a Narcisa chegava à sua mesa o colégio ficava num momento de absoluto silencio. Talvez fosse só uma coincidência, porque instantes após voltava o som das vozes e da algazarra das crianças. 
- Fale Narcisa, o que você deseja? Pergunta o prestativo e inocente monitor do segundo andar.
- Sabe... “seu” Fernando... eu... tô com dor de cabeça... eu estava brincando com a “luzinha” azul... e de repente comecei a ficar meio enjoada...
- “Luzinha azul”? Que raio de “luzinha azul” é essa Narcisa? Pode mostrar para o tio? O que você está sentindo, querida?
- “Tô meio enjoada...”
- Calma, vou te levar para a enfermaria, mas antes mostra pro tio a “luzinha azul”.
Narcisa balança docemente a cabeça esfregando os olhos e aponta para o pátio da escola. 
Fernando leva-a pela mão e pede para que ela indique o local onde está a tal da “luzinha azul”. Quando chegam ao pátio, ela aponta para uma caixa. Uma pequena caixa. A caixa tinha algumas inscrições. Era metálica e parecia muito pesada e possuía um símbolo.  Antes de ser monitor Fernando trabalhou alguns anos em  áreas industriais. E conhecia muito bem o símbolo que estava na caixa. Significava “perigo – radioativo”

Narcisa inocentemente aponta para o artefato metálico e após para alguma coisa que parece brilhar logo após a caixa.
O monitor do colégio mandou isolar a área. Chamou a policia, o corpo de bombeiros e até aos fuzileiros navais. A rua se encheu de curiosos. Um cordão de isolamento foi armado enquanto retiravam as crianças do colégio, no mesmo momento em que ambulâncias chegavam e um carro de técnicos da comissão nuclear. Dois técnicos vestidos de roupas a prova de radiação saíram dos veículos munidos de medidores de radiação e roupas especiais. Pais chegavam com seus automóveis em profusão, enquanto estações móveis de televisão se posicionavam diante do que parecia ser o quadro de um ataque terrorista. Na verdade uma equipe tática do exército despejou cinqüenta e dois soldados de três caminhões ao lado do colégio. Houve um telefonema anônimo naquela manhã para o ministério do exército, mas ninguém deu muito crédito porque a voz que realizou a denuncia era de uma criança. Especificamente, a voz de uma menina.
A confusão ficava maior a cada momento, a equipe médica proibiu a saída das crianças da área isolada enquanto não fosse verificado se havia contaminação radioativa de alguma delas.
A primeira criança a ser examinada foi a Narcisa, que felizmente não apresentava nenhum vestígio de contaminação.
Os pais furaram o bloqueio em direção às crianças recém-liberadas, mas foram contidos pela barreira de militares.

Foi quando finalmente começou o tumulto.
 
 



Indiferente a gritaria e a histeria da multidão, uma criança sorria.
Sinistra e discreta.
Narcisa...

Não. Nunca encontraram nenhum vestígio de radiação no pátio do colégio. Sim. O artefato era falso. A “luzinha azul” era só uma lâmpada com led. Um led azul.
Não. Nunca descobriram o autor da proeza.
Narcisa ganhou uma semana em casa.
Para se recuperar do trauma.


Da redação da Welington Corporation
  

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